A saúde é um direito humano universal, consagrado em diversos tratados internacionais dos quais Portugal é signatário. A equidade em saúde beneficia a todos, não apenas aqueles que são desfavorecidos. De forma direta, com melhor saúde para todos e com menores custos, mas também melhorando a coesão social e o sentimento de pertencimento das pessoas.
É com enorme preocupação e apreensão que vemos como um governo que demonstra pouca energia e ideias para melhorar o acesso aos cuidados de saúde, a qualidade dos cuidados prestados ou para resolver o problema da equidade no financiamento dos cuidados, tem toda a disponibilidade para se dedicar a novas formas de restringir o acesso.
Mais grave, estas decisões foram tomadas sem dados concretos, apenas palpites, perceções e manipulações de conceitos. Apesar de o próprio Governo assumir que “a dimensão da referida realidade ainda [não é] cabalmente conhecida”, isso não o impediu de tomar a decisão mais radical e que mais restringe o acesso aos cuidados de saúde desde sempre.
No entanto, o pouco que se aprende sobre o tema torna a decisão do Governo ainda mais condenável. Em 2023, o número de estrangeiros não residentes atendidos nas emergências do SUS correspondeu a 0,7% do total de episódios. Não sabemos quantos desses episódios foram pagos por eles mesmos, por planos de saúde dessas pessoas ou através dos esquemas de proteção social de seu país. Mas imaginando o pior cenário, em que nenhum desses episódios de urgência dos últimos três anos foi pago, temos cerca de 15 milhões de euros de dívida, ou seja, 0,1% do orçamento anual do serviço público de saúde ou cerca de 2% da perda fiscal que a redução do IR introduzida no Orçamento do Estado para 2025 causará.
É importante relembrar que falar em estrangeiros não residentes significa mencionar um grupo bastante heterogéneo. Falamos de turismo, um setor que o país incentiva e promove há 15 anos, falamos de acordos de cooperação em saúde com PALOP, a quem a Administração Central do Sistema de Saúde cobrou perto de 15 milhões de euros nos últimos 3 anos, ou falamos também de rede de tráfico de mulheres, uma questão que deve ser resolvida pelas forças de segurança, não desprotegendo ainda mais quem já está em posição de extrema vulnerabilidade.
O assunto ganha requintes de maldade, quando juntamos outro grupo de pessoas aos que citei no parágrafo anterior: os migrantes que aguardam regularização. Os problemas e a lentidão do antigo SEF, e da agora AIMA, são públicos. Em setembro eram cerca de 400 mil processos, de pessoas trabalhando e morando em nosso país, mas sem documentos. Que justiça existe em um Estado que precisa dessas pessoas, que também cresce com o trabalho dessas pessoas e com o dinheiro de seus impostos, e depois lhes nega os direitos mais básicos de acesso a cuidados de saúde de emergência?
Sistemas de saúde europeus garantem o acesso a cuidados de saúde a migrantes, com ou sem documentos, assim como a uma carteira de serviços do âmbito da saúde pública, como a vacinação ou o combate a doenças infeciosas. Atualizar as vacinas de quem chega ao nosso país de acordo com o programa nacional de vacinação é um bom exemplo de uma intervenção de saúde que, não sendo de urgência, salva vidas e poupa recursos a toda a comunidade, garantindo segurança e bem-estar não apenas aos que são beneficiados diretamente pela medida.
Os problemas e desafios que o SNS enfrenta são reais. Há uma enorme necessidade de investimento em infraestrutura e equipamentos, de melhorar as condições de contratação e retenção dos profissionais, integrar cuidados, expandir o acesso a cuidados de saúde de qualidade ao interior do país, ou melhorar a incorporação tecnológica, só para citar alguns. Afirmar que todos estes problemas seriam resolvidos com menos 0,7% de episódios de urgência é profundamente desonesto. E, pior, ignora os riscos para toda população (e os gastos) associados ao fim da prestação desses cuidados.
A lei atual já permite gerir o fluxo de doentes e efetuar a cobrança dos cuidados prestados, procurando garantir que ninguém fica sem acesso à saúde. É deveras triste que o Governo prossiga a sua governação baseada em perceções. O populismo e o nacionalismo prejudicam-nos a todos. Que a principal resolução de Ano Novo de Montenegro seja uma governação baseada em evidência, com foco em resolver problemas das pessoas. Para o bem de todos e todas nós.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico