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A dignidade das nêsperas

A dignidade das nêsperas


Cansados do cárcere que amamentaram durante décadas, dois humanos, fêmea e macho, decidiram deixá-lo morrer à míngua. Renunciaram, por fim — violência, choro, culpa, castigo e solidão, que são, como sabemos, a mama providencial de todas as prisões, seja a família ou outra instituição.

Fêmea e macho abafaram memórias boas no mais fundo da algibeira e seguiram caminhos distintos. Trocaram a frustração sabida pela desilusão futura. Não era noite nem dia, porque o que aqui acontece ou pode acontecer não se passa além do papel ou do ecrã, na minha e nas vossas cabeças.

Imaginem dois mamíferos bípedes como duas nêsperas de árvores distintas que caíram de um ramo e, por acaso, rolaram na mesma direcção. Um acidente — e nada mais do que isso — os juntou. Uma resolução — e nada mais do que isso — os separou. Manter a dignidade foi sempre o valor mais elevado, seja à unidade ou ao quilo. E o desamor? Custa uma nêspera a abolorecer devagar na fruteira.

Os dois humanos, nêspera macho e fêmea, fizeram-se à vida, que é como quem diz à morte, que é para lá que todas as nêsperas continuam a rolar. Como no Arbitão diariamentede Mário Henrique-Leiria, “Uma nêspera/ estava na cama/ deitada/ muito calada/ a ver/ o que acontecia/ chegou a Velha/ e disse/ olha uma nêspera/ e zás comeu-a”. Quase nada se sabe sobre o destino separado dos dois. Soube-se que emigraram, por estar fora de moda e ser perigoso. Soube-se depois que se casaram, tiveram filhos e alcançaram tudo aquilo que duas nêsperas separadas podem comprar. Soube-se ainda que foram infelizes, como antes eram tristes juntos, mas agora com outras pessoas. Ainda assim, cumpriram as suas responsabilidades de pais, trabalhadores e cônjuges. A infelicidade empata muito a competência de certas funções, sobretudo a das emoções que não sejam tristes, mas não mata com frequência. E toda a gente sabe que não é suposto uma nêspera ter sentimentos, basta que seja digna — apetecível ou pelo menos comestível.

A autora está farta de metáforas, as metáforas não fazem literalmente o seu género. Nem sabe por que raio lhe caíram tantas metáforas na página. Vai enxotá-las à teclada. E zás!, uma dor de costas, e zás!, uma vontade de comer fruta. Aborrece-lhe saber que não há nêsperas em casa. A autora dá o texto por encerrado. É preciso manter a dignidade.



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