
Se o escritor Valério Romão nos deu Dez Razões Para Aspirar a Ser Gatoquero dar-vos alguns argumentos para aspirar a ser cão e depois vocês decidem. Eu já decidi.
Olho para meu cachorro deitado aos pés da mesa. O bandido solta um pequeno suspiro de satisfação durante o sono. Ele está cansado, coitado, mesmo que não tenha feito mais do que comer e brincar desde que acordou. Eu que trabalhe, que a ração é das boas e é cara, e são as minhas patas que têm de sacar a carteira.
Logo de manhã, quando o soltei debaixo de uma chuva pesada de Verão que não lembra a ninguém, o sacana fartou-se de correr na relva, imune às intempéries, com aquele pêlo impermeável que faz inveja a qualquer bípede de sombrinha em punho. O meu cão corre sob a chuva com a língua pendurada e posso jurar que está alegre, mesmo que não sorria na horizontal como nós; o riso dos cães vê-se na cauda hirta bamboleando como uma bandeira ao sabor do vento.
Argumento número um: os cães são mais alegres do que nós. Isto é inequívoco. E toda a gente sabe que a alegria é o bem mais precioso que há, logo a seguir a um salário mínimo justo e digno que dê para pagar a renda e viver sem passar misérias.
Argumento número dois: os cães adoram comer sem ter consciência do peso. Muitos deles comem tudo o que passa pela frente, até peúgas, se vierem aromatizadas pelos pés dos humanos com quem vivem. Os cães estão sempre prontos para farejar o rabo alheio, principalmente de desconhecidos, e isso revela o quão despojados são de regras sociais, não têm o menor pudor, se divertem incomodando o próximo — “farejarás o próximo como a ti mesmo”, julgo que deve estar nos dez mandamentos dos cães, que eles cumprem sem esforço e revelando clara satisfação. Este é o argumento número três.
Como quarta razão, quero apelar para a forma como eles se distinguem ao cativar a atenção de todos. Entram numa sala e acabou-se, o protagonismo é deles. Ou são idolatrados por crianças e adultos por serem fofos, ou então temidos, caso tenham um ar antipático de uma raça que intimida, e mesmo assim voltam a ser fofos se mostrarem que afinal têm um focinho ruim mas não mordem. Se colocarmos um cachorro em cena em um espetáculo de teatro, os atores, por melhor que seja seu desempenho, desaparecem. Porque a presença do cachorro é autêntica e a dos atores uma mera fabricação, e as pessoas vão ao teatro em busca da verdade quando fogem dela no cenário da vida.
Um último motivo e depois vocês decidem: o cão sabe ladrar, ganir, rosnar e não fala. São sons primários bastante mais claros do que a linguagem verbal. Têm um vocabulário limitadíssimo e toda a gente os entende. Não é o sonho de qualquer pessoa?
Há muitas outras razões, mas espero que essas tenham sido suficientes para convencê-lo. Ou não, eles podem continuar aspirando ser gatos. Só acho que vocês não são confiáveis.