Schadenfreude: termo alemão que tem como significado o prazer malicioso frente à adversidade alheia. Com a alimentação, infelizmente, este pensamento é comum e pode vir até dos próprios profissionais de saúde com várias coisas que possam ser facilitadoras do emagrecimento ou confiram mais sabor aos alimentos. Dos adoçantes que proporcionam doçura com poucas/nenhumas calorias já muito se disse, desde o aumento do risco de cancro até interferências na microbiota intestinal, sem grande evidência que justifique tanto alarido. Os “injetáveis” para emagrecer — com resultados inegáveis na contenção da pandemia de obesidade — também são vistos por vezes como uma “batota”, na óptica de que para emagrecer quase que é necessário “sangue, suor e lágrimas”.
Agora temos outro candidato a este título. Nos últimos anos, surgiram com força no mercado as famosas fritadeiras de ar (fritadeiras sem óleo) e como tudo que parece ser bom demais tem que ter um lado lunar, vários “Diáconos Remédios” surgiram batendo o dedo e avisando: “Mas cuidado com a acrilamida!”
Do que estamos então a falar? A acrilamida é uma substância que se forma naturalmente em todos os alimentos que possuem amido durante o cozimento em altas temperaturas (>120°C). Essa reação de Maillard entre açúcares e aminoácidos presentes nos alimentos os torna mais tostados e com o sabor característico que todos nós gostamos. Temos aqui de cara um bom indicador de sua presença e da forma como podemos mitigá-la: quanto mais torrado/tostado/marrom pior. Os alimentos onde a acrilamida está mais frequentemente presente são batatas fritas e outros lanches frituras, biscoitos, bolachas, torradas e também no café (e no tabaco por sinal). Quanto ao impacto da ingestão de acrilamida na saúde, este é outro bom exemplo de substância que “assusta” na investigação animalmas que perde impacto na pesquisa em humanos. Não se pode de todo dizer que não existe nenhum efeito nefasto na sua ingestão, pois o potencial genotóxico e carcinogénico está lá, mas apenas alguns estudos demonstraram aumento do risco de câncer de ovário, endométrio e mama em mulheres na pré-menopausa.
Quando analisamos a formação de acrilamida com o uso da fritadeira de artambém podemos constatar que os valores ficam bastante abaixo ou, no limite, iguais à fritura por imersão ou cozimento no forno. Esta fritura por ar quente além de uma grande poupança de energia em relação à confecção num forno tradicional, poupa logicamente muita gordura e calorias, pois não existe a fritura por imersão, mesmo sabendo que eventualmente o sabor, cor e crocância de alguns alimentos se tornam melhores quando são borrifados com azeite/óleo pré-confecção. Uma das formas de também contrabalançar este potencial efeito negativo da formação de acrilamida é juntar a esses preparados ervas aromáticas e especiarias e seus respectivos fitoquímicos com potencial antioxidante. Trocar o sal por orégãos, alecrim, cravinho, manjericão, pimenta, açafrão e alho em pó dão uma ajuda sensorial e também à saúde.
Para além disso, o mais importante perceber é que as fritadeiras de ar não são substitutos da comida de panela da mamãe ou da vovó (que podem até olhar para essas “modernices” com desdém e preferem em muitos casos “fritar de verdade” ou fazer um assado com uma bela “caminha de azeite” mesmo em refeições “ normais” durante a semana). Eles são, sim, um utensílio muito valioso para indivíduos mais jovens, estudantes universitários, solteiros, divorciados, pais com filhos pequenos e sem tempo, que são os principais consumidores de comida ultraprocessada e de aplicações para entrega de comida ao domicílioonde grande parte das escolhas estão longe de ser equilibradas. Permite também fazer um brilharete para crianças com uma espécie de comida rápida caseira, onde se podem conjugar batatas fritas na fritadeira de arhambúrguer (escolhendo as opções com maior % carne nos ingredientes e menor % gordura ou fazendo também em casa) e refrigerantes luztornando a alimentação em casa menos monótona e com menor consumo de calorias, açúcar, gordura e sal.
Quando em ciência se fala em risco, é preciso ponderar o peso do mesmo em cada ação individual/alimentar que se toma e sobretudo nas substituições de comportamentos de maior risco por outros menores. A relação da acrilamida com o câncer faz “cócegas” na relação da obesidade com o mesmo. É uma comparação muito semelhante ao açúcar vs. adoçantes, mas agora na versão salgada. É utópico pensar que serão as fritadeiras de ar ou os adoçantes a solução definitiva para um problema tão complexo como a obesidade. Mas o paladar de quem possui esta doença do comportamento alimentar não se contenta com pouco estímulo sensorial nem com os alimentos de sabor algo “neutro” presentes em muitos planos alimentares como tostas, queijos luzcenouras bebêtomate cerejafrutas gordurosas, legumes crus, frutas, etc.
Portanto, nem a acrilamida é um agente carcinogênico robusto, nem a confecção na fritadeira de ar faz disparar esse valor. Preferir o dourado/amarelo ao torrado/castanho (válido também para torradas em torradeira, assados e grelhados) e ver a fritadeira de ar como um “forno individual” que não se limita a fazer batatas fritas pré-congeladas e outros alimentos como hambúrgueres, croquetes, douradinhos, mas que pode ser útil para muitas outras receitasé meio caminho andado para uma alimentação menos cinzenta, prática e rápida.