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Tempos líquidos (ou Quando o governo se evapora)

Tempos líquidos (ou Quando o governo se evapora)


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Enquanto assistimos o primeiro-ministro português, Luís Montenegro, empacotar seus pertences e abandonar o São Bento, lembrei-me, inevitavelmente, daquele tio folgado que desaparece durante o almoço de família quando chega a hora de pagar a conta. A diferença é que, neste caso, a conta ficará para todos nós.

Douglas North, economista que ganhou o Prêmio Nobel por explicar como as instituições moldam as sociedades, diria que estamos testemunhando o colapso não apenas de um Governo, mas de uma frágil arquitetura institucional. North argumentava que instituições são as “regras do jogo” — as restrições humanamente concebidas que estruturam a interação política, econômica e social. Quando essas regras se tornam incertas, toda a sociedade sofre.

Portugal parece ter adotado uma versão bastante criativa dessas “regras do jogo”. É como se estivéssemos brincando de Monopólio, mas com as instruções do Jogo da Glória e os dados do Yahtzee. E, no meio da partida, o árbitro decidiu que também quer jogar.

Zygmunt Bauman, com sua teoria dos “tempos líquidos”, complementaria esta análise com um suspiro resignado. Para ele, vivemos numa modernidade onde tudo o que é sólido se desmancha no ar: empregos, relacionamentos e, pelo visto, governos portugueses. A liquidez institucional que Bauman descreveu manifesta-se perfeitamente na política deste país — fluída, instável e com a mesma capacidade de sustentação que uma fatia de pão num prato de caldo verde.

E, no meio deste banquete institucional líquido, temos a crise migratória. Pessoas reais, com sonhos e necessidades concretas, navegam nas águas turbulentas de um sistema que nem consegue decidir qual formulário deve ser preenchido em triplicado ou qual carimbo deve ser aplicado com mais força.

Tentamos gerir a imigração com instituições que têm a solidez de um sorvete ao sol alentejano. Criamos agências, reagrupamos departamentos, mudamos o nome das repartições (porque mudar o nome resolve tudo, não é?), enquanto as filas de imigrantes crescem mais que teorias conspiratórias nas redes sociais.

North argumentaria que precisamos de instituições fortes e previsíveis para gerenciar questões complexas como a imigração. Bauman alertaria que, numa sociedade líquida, tendemos a buscar soluções biográficas para problemas sistêmicos. É como construir um muro de contenção com gelatina.

A queda do governo, vista por este prisma, não é apenas uma crise política — é o sintoma de uma fragilidade institucional crônica. Nossas instituições sofrem de osteoporose, quebrando-se ao primeiro espirro da realidade.

Para resolver a questão migratória (ou qualquer outra questão substancial), precisamos de instituições que não se dissolvam ao primeiro sinal de chuva. Precisamos de regras claras, aplicadas consistentemente, independentemente de quem ocupa temporariamente os gabinetes do poder.

Enquanto continuarmos com instituições que se transformam com a velocidade das tendências nas redes sociais, estaremos condenados a ver cada novo Governo prometer reconstruir o que o anterior não construiu, apenas para deixar a obra inacabada para o próximo.

Num país onde a única coisa mais volátil que o preço da habitação é a permanência dos nossos governantes, continuamos a fingir surpresa quando o castelo de cartas desaba novamente, como se não soubéssemos que todo carnaval tem seu fim. Talvez devêssemos parar de chamar isto de crise e começar a tratá-la pelo que realmente é: a versão lusitana de entretenimento sazonal, tão previsível quanto turistas britânicos bronzeados no verão algarvio. Afinal, em Portugal, só o bacalhau e a desilusão são verdadeiramente constantes.



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