
A polêmica em curso, acerca do conteúdo das supostas reuniões entre o líder do Chega e o atual Governo, me suscitou este título, adaptado da obra homônima de Hannah Arendt, bem como a pequena reflexão que se segue.
Lembrando de forma sintética o argumento de Arendt, podemos distinguir dois tipos de verdade: a verdade baseada nos resultados da ciência, que podem ser demonstrados pela teoria e pela experiência; e a verdade de fato, cuja demonstração exige o testemunho, a corroboração de terceiros, a coerência narrativa, acerca de determinado fato ou acontecimento.
Sublinhe-se que, para a filósofa alemã, naturalizada americana, a solidez e o destino das duas formas de verdade não são semelhantes. A primeira é mais robusta, mais difícil de adulteração ou falsificação. Já a segunda é mais frágil, sujeita à interpretação, ao contexto e à subjetividade do observador.
Nas próprias palavras de Arendt, eventos, fatos, são mais frágeis que axiomas, descobertas e teorias produzidas pelo espírito humano. Diante destes, estamos diante de uma verdade de natureza argumentativa, baseada na interação dos protagonistas para que se estabeleça a respectiva factualidade. Algo semelhante ao que ocorre, ainda que para surpresa de muitos, com a fixação dos fatos em que se baseia o veredicto judicial.
E é aí que entronca toda a discussão sobre se o Governo fala a verdade, quando afirma que teve reuniões semelhantes com vários partidos de oposição para a preparação do Orçamento do Estado para 2025 e o líder do Chega que, na sua interpretação, na sua alegação da leitura dos fatos, afirma terem servido as mesmas reuniões para lhe propor a integração do próprio Governo.
Isto é, para o cidadão comum, destinatário e, em democracia, protagonista último da ação governativa, quem dirá aqui a verdade? Usando a linguagem de Arendt, de que verdade falamos?
A política é compatível com a verdade axiomática, com a verdade da ciência ou simplesmente deve se limitar à verdade dos fatos, discursiva, razoável, onde a interpretação, baseada em uma ética da responsabilidade é condição suficiente para sua legitimidade procedimental em uma sociedade complexa, aberta e pluralista?
Não estamos, mesmo sem o advento e expansão das plataformas algorítmicas, enxameadas de redes sociais, diante do fenômeno de sempre: a busca incessante da justificação, da persuasão, para uma narrativa da factualidade relevante?
Não será que o meta discurso acerca da verdade na política é apenas mais um recurso, um instrumento ou mesmo um artifício hermenêutico, retórico, ainda que um artifício de grande utilidade?
Duas coisas podemos, porém, concluir, ainda que provisoriamente:
- A primeira é que o debate na política se baseia na dúvida e não na certeza. Esta será sempre, mais do reino da crença do que do reino da verdade. Esta não é, afinal, ciência, mas ideologia.
- A segunda é que a política se baseia no equilíbrio argumentativo, no respeito mútuo, na decência dos propósitos e dos protagonistas, mais do em qualquer verdade insofismável. Ou, dito de outro modo e lembrando as palavras de Francisco Sá Carneiro, a política sem risco é aborrecida, mas sem ética é uma vergonha.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico