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Quanto mais nos vemos, mais subimos a bitola da perfeição

Quanto mais nos vemos, mais subimos a bitola da perfeição


Querida Mãe,

No outro dia, disse a uma amiga que raramente me olhava ao espelho. Ela ficou chocada, como se fosse um ato de falta de amor-próprio. Fui para a casa a pensar se seria. Será que não me vejo ao espelho por sentir que é sinónimo de vaidade, por vergonha e insegurança? Talvez, sim. Talvez haja um fundo de verdade nesse diagnóstico, mas seria melhor para mim obrigar-me a olhar-me ao espelho e repetir para mim mesma quatro vezes ao acordar que sou linda? Cheguei à conclusão que não!

Esta reflexão profunda, fez-me lembrar o texto de uma blogueiro universitária que li há um anos e de que nunca mais me esqueci. Basicamente ia casar, e andava obcecada com o peso e as borbulhas, e tomou a decisão de não se voltar a ver ao espelho até depois da cerimónia. Contava que o resultado tinha sido espetacular, nunca se tinha sentido tão segura, bonita e confiante. Quanto mais penso nisso, mais acho que é esse o caminho. Todos nós olhamo-nos demais ao espelho, nunca em nenhuma outra sociedade as pessoas se viram a si próprias tantas vezes — fotografias, vídeos, selfiesespelhos — e, quanto mais nos vemos, com um olhar furiosamente crítico, mais vamos subindo a bitola da perfeição. Mais nos vamos apegando a detalhes do nosso corpo que adoramos, criando raiva e desilusão pelos que não gostamos. Mas, mesmo, aqueles que nos orgulham vão provavelmente piorar com o tempo, por isso a comparação é inevitável e dolorosa.

Quando não me olho ao espelho, mas me visto bem ou vou escalar, sinto-me forte e bonita, e depois, tantas vezes, o espelho destrói-me essa sensação porque reparo numa borbulha ou num ângulo qualquer que me desfavorece. O meu cérebro fica ali a procurar conciliar as duas sensações, voltando ao espelho só mais uma vez para confirmar a primeira impressão. Com uma agravante, ficamos presos à impressão de que toda a gente que se cruza connosco também está a reparar no “defeito”.

Mãe, basta olhar para as histórias, para perceber que do nosso reflexo não vem grande coisa — veja lá se o espelho ajudou a madrasta da Branca de Neve? Sem ele teria sido provavelmente bem mais capaz de acolher a enteada. E também não me ajuda a mim, por isso venho declarar-lhe que vou eliminá-los da minha vida, e as selfies também, claro. As fotografias ficam porque, primeiro, gosto das memórias; e, segundo, ao revê-las consigo ver-me gira quando, na altura, lembro-me perfeitamente de que me sentia gorda ou feia. O que é a prova dos nove de que o nosso olhar é mentiroso! Alinha?


Querida Ana,

Alinhada já eu estou, passo semanas sem me ver ao espelho. O que não tenho a certeza absoluta é de que seja uma coisa inteiramente boa, porque sinto dificuldade em não a correlacionar com uma certa preguiça com a aparência o que, por sua vez, pode ser sintoma de falta de tempo para mim. Ou mesmo, uma desistência. E se desistir de nos angustiarmos demais com a velhice inevitável só pode ser um sintoma de saúde mental, se desistirmos demais suspeito que estamos também a desistir das pessoas que nos são mais próximas, como se não valesse a pena o investimento “só” para nós/ “só” para elas.

O que vou dizer a seguir vale o que vale, ou seja nada, mas sempre que viajo por Espanha e vejo aquelas senhoras mais velhas saírem de casa às cinco da tarde todas aperaltadas para se irem sentar numa esplanada com as amigas, igualmente engalanadas, fico com a impressão de que são mais felizes do que as portuguesas. Talvez, por dentro, amaldiçoem a ditadura do espelho, mas diria que o saldo é positivo.

Aliás, achava interessante que se fizesse um estudo sobre o impacto do trabalho remoto na autoestima — há pijamas lindos e sei que são a tua peça de roupa preferida (para além de vestidos de noiva e de baile, que desde pequenina sempre adoraste), mas suspeito que a versão fato de treino 7 x 7, por uma existência inteira, e sem o olhar reprovador de um espelho ao estilo da Branca de Neve, deve ter um custo.

Enfim, dito isto, faz-me pele de galinha que cada vez mais adolescentes recorram a cirurgias plásticas numa ânsia de se “corrigirem” para atingirem, como dizes, um ideal de perfeição imaginado e, tenho a certeza, de que é uma romaria à frustração. Não é preciso um divã para perceber que o mal-estar está dentro delas e não fora e que, por isso mesmo, nunca a imagem que o reflexo lhes devolve as vai sossegar. Impressiona-me que exista uma indústria crescente que vive dessa insegurança e que profissionais de saúde embarquem nela.

Também, confesso, que me arrepiam as “plásticas” antienvelhecimento que alteram completamente a fisionomia das pessoas, ao ponto de não as reconhecermos. Para não pedirem uma indemnização aos cirurgiões só posso suspeitar que têm em casa aqueles espelhos que antigamente existiam nos circos e que distorcem a imagem ao gosto do cliente, só pode ser.

A conversa já vai longa, mas subscrevo o teu elogio ao poder terapêutico das fotografias, a que acrescento uma indicação importante: dão-nos a consciência de que temos de aproveitar o dia de hoje, porque amanhã vamos estar muito piores.


O Birras de Mãeuma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filhalogo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — como invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990



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